Como estreia de minha coluna mensal, gostaria de trazer um tema que eu acho crucial e muito interessante. Existe algo que toda empresa deseja ser: referência. Ou, pelo menos, toda empresa que deseja atingir um nível, um patamar na consciência de cada consumidor, que, ao ser lembrado do nome, ao ter o nome de uma determinada empresa ou marca evocada na sua consciência, imediatamente já atribua certos valores para aquela imagem que se forma em sua mente.
Algumas empresas conseguem chegar a um nível de referência que se tornam o próprio nome do produto que vendem na imagem comum. Ninguém compra uma “lâmina de barbear”, mas uma gilete, mesmo que a gilete em questão não seja fabricada pela Gilette. O mesmo serve para quem vai tirar uma xérox (mesmo se a marca da fotocopiadora não seja a Xerox). Os exemplos podem ser multiplicados indefinidamente.
Porém, uma marca só chega a esse nível tendo uma história memorável. De acordo com o especialista Nate Butler, ser memorável é um dos principais elementos para a identificação da marca e sua consolidação na mente do consumidor. É por isso que tantos especialistas afirmam que a comunicação da história da marca — e como ela se relaciona com a própria história de vida do consumidor — é o principal elemento de uma empresa com o mercado e com o público.
O problema é que por mais cuidado que uma marca tenha sobre a percepção da sua história dentro da indústria — dos seus avanços, dos seus projetos, das disrupções e transformações que trouxe à indústria e ao consumidor, etc. —, cedo ou tarde há uma mancha, ou algo que desabone a integridade dessa marca. Isso nem sempre leva à derrocada da marca no mercado. Às vezes, pode ser revertido com um bom reposicionamento de marca e adoção de novas práticas, mas uma coisa é certa: vai custar muito! E pode ficar gravado para sempre na história de uma empresa.
Percepção, história e crises
Recentemente, assisti a dois filmes que me fizeram refletir bastante sobre como o desastre, o negativo, é muitas vezes aquilo que chama mais a nossa atenção.
Enfim, esses dois filmes tratam de uma família e de uma empresa que levam o mesmo nome: DuPont. E a empresa tem esse nome porque pertence à família Du Pont. Os filmes são Foxcatcher (2014) e Dark Waters (2019). São filmes espetaculares, dirigidos e estrelados por grandes artistas: o primeiro foi dirigido por Bennett Miller (de Moneyball) e traz Steve Carell no papel principal. O segundo é dirigido por Todd Haynes (de filmes como I’m Not There e Carol, premiadíssimos!) e é estrelado por Mark Ruffalo (coincidentemente também astro do Foxcatcher).
Os dois filmes narram histórias de dois episódios reais e diferentes do lado negro da família e dos negócios DuPont. E apesar dessas duas histórias não estarem relacionadas e terem acontecido em décadas diferentes, ambas apontam para o mesmo princípio: a falta de comprometimento com o público, com bons valores pessoais e de mercado, a negligência com a verdade e com a disciplina empresarial e pessoal, podem desmanchar todo o prestígio e a solidez que uma marca angariara ao longo de décadas.
Apanhando prêmios — e crimes
Primeiro, quero falar de Foxcatcher, que não é sobre a empresa DuPont, mas sobre a família Dupont. Especificamente, é sobre John du Pont (Carrell).
A trama do filme narra a história do envolvimento de dois medalhistas olímpicos de luta greco-romana: Mark (Channing Tatum) e Dave Schultz (Mark Ruffalo) com du Pont. No início dos anos 1980, John du Pont, herdeiro da fortuna da família e conhecido por suas obras de filantropia, pelo seu amor à botânica, à filatelia e à ornitologia (chegando a escrever alguns livros sobre o assunto) e por pagar estipêndios a várias instituições de ensino da Pensilvânia, estado que abriga o império familiar. Após ver uma palestra de Mark Schultz, John o convida a participar do seu time de luta greco-romana — a equipe Foxcatcher. Ele aceita, e o faz convidar Dave.
Com o passar do tempo, o relacionamento entre os irmãos Schultz e John du Pont vai ficando cada vez mais errático, por uma série de razões. Entre elas, uma clara evidencia de “liderança tóxica” de du Pont, com assédios dos mais variados espectros, inclusive a influência no uso de drogas.
Após uma série de desavenças, Mark decide abandonar a equipe liderada por John du Pont e voltar para casa após disputar (e perder) os Jogos Olímpicos de Seoul. Cada vez mais perturbado mentalmente, John atribui a Dave a ausência de Mark, culminando em uma enorme tragédia.
Ao que parece, a história de John du Pont e da Equipe Foxcatcher não arranhou a solidez da marca DuPont, líder no mercado de químicos mundial há mais de duzentos anos. Alguns dos principais compostos de polímeros, por exemplo, são de procedência da DuPont, como o nylon, o teflon, o kevlar e a lycra. Porém, a exposição negativa que a família Du Pont passou a ter a partir do início dos anos 2010, com o retorno da tragedia entre John e a família Schultz ao escrutínio público, coincidiu com o escândalo da contaminação da cidade de Parkersburg, na Virgínia Ocidental — um dos estados mais pobres dos EUA.
O caso virou um escândalo nacional, culminando na fusão da DuPont com outra gigante das indústrias químicas, a Dow, apostando num rebranding completo para afastar a história.
Porém, o filme Dark Waters a relembra com clareza inquestionável.
Com a elegância que lhe é característica, Todd Haynes narra como Robert Bilott (Ruffalo) investigou e descobriu que as estranhas mortes de animais (e, depois, de humanos) em Parkersburg eram resultados da infecção da água do município pelo ácido C8, usado na fabricação de teflon.
Após se aproveitar de uma brecha legal para ter acesso a documentos sigilosos, Bilott descobre que o ácido C8 — presente em quase todas as casas americanas porque é um dos componentes da fabricação de panelas antiaderentes — é um cancerígeno e um químico fluoro surfactante. Ou seja, ele jamais sai do sistema humano!
Acontece que Bilott também descobre que a DuPont sabia há décadas desses fatos sobre o C8. Assim, se inicia uma batalha heroica em que Bilott tenta provar diante de toda a mídia e toda a indústria americana que a DuPont deliberadamente omitiu a natureza letal deste composto químico — cujos efeitos serão sentidos pela população de Parkersburg pelo resto da vida. Ao final do filme, depois de uma batalha judicial que lembra os melhores filmes do grande diretor Frank Capra, Robert, consegue um acordo de quase 700 bilhões de dólares com a empresa em compensação.
Esses dois filmes, verdadeiras obras-primas do cinema contemporânea, servem para mostrar que toda a inovação e todo o prestígio familiar não podem bater histórias negativas sobre uma marca. Como falei acima: é uma característica natural da mentalidade humana pôr o negativo sobre o positivo.
Isso significa que não basta uma história de inovações para se proteger e se destacar. Ainda que a DuPont tenha sido por décadas uma das principais responsáveis por avanços na engenharia e na área militar (sua ênfase em pesquisas em materiais leves e resistentes foi crucial para o avanço da corrida espacial), a falta de uma política rigorosa e implacável para melhores práticas sociais, ambientais e de governança enterrou todo o capital de influência e idoneidade angariado em mais de duzentos anos de atividade.
É precisamente por isso que o tema da ESG é essencial para empresas. Ninguém quer ser a vilã em duas obras-primas de Hollywood.
– Ernesto Schlesinger